5 de janeiro de 2014

Crónica: Pantera Imortal

Nunca vi o Eusébio jogar. Vi-o no olhar do meu avô.
Este texto é sobre um avô e um neto, um futebolista e uma nação.

    Ao longo dos anos, e ainda hoje, os dois sítios em que aprendi mais sobre futebol e sobre o homem foram sempre os 2 mesmos: em campo e em conversa com o meu avô. Num campo de futebol, em total concentração no jogo jogado, vêem-se percursos de vida, vêem-se formas de estar e valores. Com a bola nos pés e de alma entregue ao colectivo. Aprendi de igual forma na sala de estar e de jantar de casa dos meus avós, a ouvir o meu avô.
    Há uns tempos fui com os meus dois grandes amigos de sempre - o Moreira, com o qual tenho este blog, e o Machado, que é só querer e o Barba Por Fazer torna-se tripartido - ao museu Cosme Damião. Fomos lá com a inocência, inexperiência e estupidez de quem achava que se conseguia ver e apreciar toda a História do nosso clube em 30 minutos. Rapidamente percebemos que não ia dar. Em ritmo acelerado passámos na secção destinada unica e exclusivamente ao Eusébio e concluímos que àquela secção teríamos que oferecer muito mais do nosso tempo - e o Benfica estava quase a entrar em campo ali ao lado. Na altura lembro-me de dizer "este holograma depois do Eusébio morrer vai ter um impacto do caraças". Talvez não tenha dito caraças, mas isso é porque nós quando estamos juntos temos um dialecto próprio e grotesco.
    Na semana seguinte contei ao meu avô a experiência vivida no museu e alguns pormenores do mesmo, entre os quais a votação do melhor onze da História do Benfica. E pronto, com o exercício mental dele escolher o onze dele, lá me levou mais uma vez noutra de tantas viagens ao passado dele, ao passado benfiquista. O meu avô falou-me e fala-me sempre das defesas impossíveis e da segurança do Costa Pereira; da força e capacidade atlética de um Félix capaz de lutar por cada bola e parar os seus adversários do rival Sporting num campo totalmente enlameado; da distinta classe e liderança do capitão Humberto Coelho; do brilhante pé esquerdo de Francisco Ferreira e do super-atleta Espírito Santo; da extrema habilidade do extremo e tecnicista Rogério Pipi, homem que o meu avô conheceu a certa data por um feliz acaso e, por fim, da veia goleadora infinita de José Águas. Claro está que a esta lista se podiam acrescentar inúmeros nomes. Quando lemos um livro criamos com a nossa imaginação um mundo, um rosto, cada acção, cada página. E as conversas com o meu avô sempre reforçaram o meu benfiquismo, fazendo-me viver outros tempos, colorir histórias a preto e branco. E se houve dois quadros que o meu avô pintou na minha memória, com valor incalculável, foram Coluna e Eusébio. O 1.º seria provavelmente o meu jogador favorito do Benfica se eu tivesse vivido na altura, considerando a forma como vejo e vivo cada 90 minutos. O Monstro Sagrado de pulmão inesgotável, que tão importante foi na recepção e adaptação do menino Eusébio. 
    E assim chegámos a Eusébio da Silva Ferreira. O olhar do meu avô perde-se quando fala dele, por ter tanto para se lembrar. Na descrição de uma força da natureza, com um remate impressionante, um goleador, um felino, o Pantera Negra. Um jogador e um homem que, com a História que escreveu para si, para o clube e para o nosso país, tinha que ter duas coisas: uma grande cabeça e um grande coração. E dois grandes pés, claro. Vi Ronaldo fazer 3 golos na Suécia, mas nunca poderei afirmar ter visto os 4 de Eusébio à Coreia do Norte, não vibrei nem assisti aos seus 9 nesse Mundial, o único em que participou. Não chorei com o King depois do jogo com a Inglaterra, não pude festejar 727 golos ao serviço do Benfica, em 715 jogos.

     O semanário Sol lançou em 2012 a colecção "Eusébio - A Vida e a Carreira", composta por 190 cromos que o Sol forneceu com a sua edição durante semanas. O meu avô colou cada um dos cromos, sem eu saber que ele estava a fazer a colecção nem que ela existia, e ofereceu-me ao estar completa. O cuidado do meu avô em entregar-me a história do melhor futebolista que Portugal conheceu faz desta colecção uma das coisas mais importantes que tenho. E o meu avô não o faria se não fosse Eusébio alguém merecedor da eternidade.
    O que Eusébio deu a Portugal não tem preço. Marcou golos mas, mais do que isso, marcou pessoas.
    Se calhar não aplaudi o mais alto que podia os últimos pontapés de saída dados por Eusébio, as homenagens ao King, se calhar deixei de olhar com total admiração para a estátua dele por a tomar como um dado adquirido. Algo que estava ali. Não mais.

    As lendas vivem para sempre. O Pantera Negra é imortal.
    O Eusébio vive no olhar do meu avô, nas melhores histórias que ele conta. Nunca me tirem o meu avô. O Eusébio vai viver para sempre nele, e depois em mim. E um dia num neto meu.
    Obrigado Eusébio.

                    Miguel Pontares

3 comentários:

  1. Fiquei sem palavras... Obrigado Miguel por esta bela história!

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  2. Esta crónica tocou-me especialmente por vários motivos (e bem sabes, MP, que não pude deixar de verter umas lágrimas, ainda que contidas):

    1º: és meu irmão
    2º: sei a devoção que sempre tiveste pelo SLB, e pelo FUTEBOL de uma maneira geral, desde que me lembro de existires
    3º: tornaste-te num HOMEM, que sendo ou não meu irmão, é bem formado, e sabe fazer muitas coisas bem feitas, entre as quais ESCREVER.
    4º: conheço o avô de quem falas nesta história, por ser também o meu, e revejo nas tuas palavras toda a admiração que lhe dedicas, ao mesmo tempo que honras a imagem do Eusébio

    Poderia escrever muito mais, mas quero apenas deixar aqui bem presente: PARABÉNS! Por favor continua a presentear-nos com crónicas como esta.

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  3. Querido Afilhado:
    Já me fizeste chorar... Adorei!
    Um beijo cheio de orgulho,
    Rita

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