8 de dezembro de 2014

Crónica: Quem és tu, senhor passageiro?

Diz-se por aí que há muito que não aparecia uma das velhas e estimadas Crónicas aqui no Barba Por Fazer. Consta, aliás, que muitos já se referiam actualmente a elas como lendas. Mitos. Houve quem dissesse que elas tinham hibernado, que tinham emigrado após "sugestão" de Passos Coelho. Mas, qual D. Sebastião numa noite de nevoeiro carregado, cá está uma. Meses depois. E de boa saúde.
    Certamente partilho com milhares de vocês várias experiências vividas nos transportes públicos portugueses. Seja num autocarro, no metro ou qualquer carruagem sobre linhas-de-ferro, há muita coisa que nos aborrece. Não vou falar daqueles momentos em que nos sentimos uma das sardinhas das latas Ramirez, nem tão pouco estou aqui para me queixar (embora fosse justificado) dos preços dos passes. O que me traz aqui é Darwin. Charles Darwin, como todos aprendemos quando temos Ciências da Natureza ou Biologia, introduziu conceitos como a "selecção natural" na sua A Origem das Espécies. E é precisamente de espécies que vos quero falar. Aquilo a que me proponho hoje é simples: com base naquilo que pude observar nos meus anos de vida, vou contar-vos que espécies todos nós podemos encontrar quando viajamos nos nossos transportes públicos. Algo como uma taxonomia dos transportes públicos, uma sistematização.
    Peço a quem estiver a ler que feche os olhos. Agora abram-nos, senão não lêem o texto. Imaginem-se num autocarro. Lá, todos nós podemos encontrar ou ser uma destas personagens:

  • O Co-Piloto: É mais ou menos evidente quem é o co-piloto. É aquele gajo que acha que o motorista do nosso autocarro é o Carlos Sousa num Dakar. Vamos nós muito bem sentadinhos no nosso autocarro a ler, a ouvir música ou a tricotar (que atire a 1.ª pedra quem nunca tricotou! Estou a gozar) e há quase sempre uma pessoa que opta por ficar de pé lá à frente, mesmo que praticamente todo o autocarro esteja vazio. O co-piloto escolhe estar ao lado do motorista, embora claramente não lhe vá indicar o caminho porque o motorista sabe o percurso de trás para a frente. E fá-lo literalmente assim. O co-piloto é um apoio para o motorista que precisa de uma palavra; um chato para o motorista que quer conduzir em paz.
        O melhor que já observei foi um co-piloto cantar uma música brasileira para o motorista com o qual o destino o juntou naquele momento. Era um autocarro da noite, quando o romantismo vem ao de cima. Mas isso é história para outro dia.

  • O Idoso que não é Velhote: Em todos os autocarros há este senhor. Normalmente é um idoso e não uma idosa. O "idoso que não é velhote" é senhor de si e da sua jovialidade, um guerreiro que nunca terá reforma, aquele que abraça os seus cabelos brancos. A última ideia não é literal porque isso (abraçar a cabeça) assemelhar-se-ia a um início de uma coreografia da Lady Gaga. E ninguém quer isso. Dito por outras palavras, o "idoso que não é velhote" é aquele senhor que, embora tenha lugares reservados para si na zona destinada a idosos/ grávidas/ deficientes, nunca aceitará sentar-se neles. Tem lá ele idade para isso!? Conclusão: em determinado contexto poderá acontecer o lugar estar vazio e certas pessoas irem de pé. Mas daí depende se se encara esse lugar como exclusivo ou prioritário.

  • O Melhor Amigo da Mochila: Admitam, muitos de vocês são esta personagem. O Melhor Amigo da Mochila pode dividir-se em 2 tipos - o casual e o premeditado. A maioria de nós somos casuais. Sentamo-nos, do lado da janela porque é mais bonito ver a paisagem, e depois colocamos a mochila/ mala no lugar do lado. Porém, uma % fá-lo porque quer com isso deixar uma mensagem: "Não senhor, aqui está sentada a minha mochila. Siga em frente, há mais lugares por aí adiante".

  • Aquele que tem um Amigo Imaginário: Esta espécie não é assim tão rara. Embora pareça em linhas gerais um maluquinho, não o é. Quer dizer, nunca se sabe o que é que nos calha na rifa. Podemos considerá-lo primo do tipo anterior. A diferença é simplesmente o lugar em que se sentam. Se o melhor amigo da mochila se senta do lado da janela, aquele que tem um amigo imaginário senta-se do lado interior. E por isso transmite sempre a ideia que tem o Asdrúbal, o seu amigo imaginário, ao lado. Quando acontece estar uma mochila do lado da janela o que acontece é o casamento entre este conceito e o anterior resultando n'O Guardião da Mochila.

  • O Velho do Restelo: Transportado directamente d'Os Lusíadas, do universo semântico de Luís Vaz de Camões, esta pessoa é aquele alarme pronto a despertar, o corvo pronto a agoirar. É aquele que quando há um acidente no lado contrário não só olha como todos os outros tugas mas levanta-se também; é aquele que quando há trânsito dispara para altos números a estimativa de hora de chegada (Só amanhã..); aquele que quando o autocarro revela algum problema, acusa tudo e todos. O motorista, a empresa, o Governo, a pessoa do lado.

  • O Dj: Um ser humano normal ouve música com headphones na quietude e paz do seu lugar. Acontece que o Dj não é um ser normal. Levante a mão quem nunca esteve num autocarro ou numa carruagem de metro/ comboio onde de repente alguém decide que aquela música que está a ouvir merece ou tem que ser partilhada com todos os outros passageiros. Para o Dj dos transportes públicos o telemóvel só conhece um modo: o altifalante.
  • O Canivete Suiço: Normalmente um canivete suiço é tido como algo bom. É multi-funcional. Porém, nos transportes públicos, este ser é um vilão. E pouco asseado ou higiénico. Estão a ver aquela pessoa capaz de descascar laranjas e comê-las durante a viagem? Aquela pessoa capaz de cortar as unhas, obrigando-nos a ouvir aquele barulho dos infernos? Pois bem, essa pessoa é o Canivete Suiço. Tradicionalmente o Canivete Suiço é também a pessoa com maior probabilidade de arrotar no autocarro e, por isso, de cheirar a chouriço. Porque para mim todos os arrotos cheiram a chouriço.

  • Aquele Cujo Nome Não Deve ser Pronunciado: O Voldemort da Carris, o Sauron da Rodoviária. Quem é? É aquela pessoa que entra no autocarro, vê o autocarro praticamente todo vazio, mas senta-se ao teu lado. Não há pior. Excepto quando se trata de uma rapariga gira, sejamos honestos.

    E pronto. As crónicas estão ressuscitadas e certamente não voltaremos a estar tanto tempo sem escrever neste formato.
    É tudo, por agora.

    PS.: Estão à vontade para acrescentar - caso se lembrem - outras espécies, na secção de comentários. 

                  Miguel Pontares

1 comentários:

  1. Reconheci todas as espécies e achei hilariante e genial a forma como foram retratadas! Demonstra poder de observação, de crítica e muito sentidode humor, como é típico no barba por fazer. Obrigada, e que regressem as crónicas!

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