28 de outubro de 2016

Revisão: 'Black Mirror' (3.ª Temporada)

Criado por
Charlie Brooker

Elenco
Bryce Dallas Howard, Alice Eve, Wyatt Russell, Hannah John-Kamen, Alex Lawther, Jerome Flynn, Mackenzie Davis, Gugu Mbatha-Raw, Malachi Kirby, Madeline Brewer, Michael Kelly, Kelly Macdonald, Faye Marsay

Canal: Netflix

Classificação IMDb: 8.9 | Metascore: 82 | RottenTomatoes: 93%
Classificação Barba Por Fazer: 87


- Abaixo podem encontrar Spoilers - 
A História: 
    Os loucos universos de contadores de histórias que imaginaram o futuro como George Orwell, Ray Bradbury, Isaac Asimov, Philip K. Dick, Kurt Vonnegut ou, na escrita para ecrã, Stanley Kubrick, acompanharam-nos ao longo dos anos. Não é exagero dizer, no entanto, que Charlie Brooker tem feito por merecer integrar esse restrito hall of fame de génios.
    'Black Mirror', que pode ser considerado o The Twilight Zone do século XXI, foi referido por nós na nossa personagem 81 em Dezembro passado. Para quem só deu conta agora da existência da série, segue-se uma breve contextualização: a série de antologia (cada episódio aborda uma realidade diferente, com um leque de personagens diferente) britânica ganhou cotação no Channel 4 em 2011 e 2013, com duas temporadas de 3 episódios cada; em Dezembro de 2014 houve um especial de Natal com Jon Hamm (Mad Men), mas desde aí a série ficou congelada. Até a Netflix entrar em cena. A gigante do streaming e video-on-demand decidiu dar nova vida a 'Black Mirror' - tarde demais para fazerem o mesmo com Utopia, senhores da Netflix? - mantendo o cérebro e coração criativo, ou seja, o criador e argumentista Charlie Brooker.
    A missão da série está preservada: uma reflexão que visa criticar, alertar, satirizar ou extremar a nossa vida quotidiana e o mundo para o qual caminhamos, por influência e consequência da tecnologia actual ou de possíveis tecnologias futuras. Tudo isto com um tom que tem tanto de negro como de irónico, cínico e hipócrita.
     Até hoje, num conjunto de 7 episódios, Brooker tinha-se multiplicado em originalidade: um dilema político a envolver um porco, a áspera futilidade dos talent shows, a tecnologia em defesa de ciúmes e dúvidas asfixiantes, um luto arrastado graças à Inteligência Artificial, uma condenação que vira uma perpétua diversão alheia, um cartoon sem papas na língua a ascender na esfera política, e para 'White Christmas' é difícil encontrar uma curta definição. Julgamos ser mais ou menos unânime que no lote de episódios pré-Netflix havia 3 ou 4 verdadeiras obras-primas, variando a avaliação, como sempre, de acordo com o gosto pessoal. Mas quase todos com a capacidade, que a nova fornada também revela, de nos fazer mergulhar rapidamente naquele mundo, oferecendo-nos muitas vezes um twist e finais que demoram muitos dias a serem digeridos. Porque o melhor terror é a realidade, e em 'Black Mirror' raramente há finais felizes.

    Com uma produção que perde em alguns momentos aquele lado trashy mas bom das séries britânicas, e com menos sotaque, a 3ª temporada entregou as 6 novas histórias de Charlie Brooker a 6 diferentes realizadores: Joe Wright, Dan Trachtenberg, James Watkins, Owen Harris, Jakob Verbruggen e James Hawes. Ao seu dispor, um casting que embora recheado de enorme talento, conserva a tradição de apostar em actores e actrizes subvalorizados.
    Bryce Dallas Howard brilha no introdutório "Nosedive", um exercício especulativo em relação à evolução das redes sociais, ao impacto destas nas nossas vidas e relacionamentos, e à dependência da classificação do nosso eu social pelos outros, para se perseguir aquilo que é moda, com os sorrisos amarelos a substituírem os comentários sinceros e genuínos. Depois, "Playtest", protagonizado por Wyatt Russell (filho de Kurt Russell e Goldie Hawn) explora o futuro dos videojogos e da realidade aumentada, tornando-se um dos melhores filmes de terror dos últimos tempos e confirmando o realizador Dan Trachtenberg (10 Cloverfield Lane) como um mestre a criar tensão. Segue-se "Shut Up and Dance", um dos maiores murros no estômago do espectador nesta temporada - partilha isso com o antigo "White Bear" - pela forma como mexe com a nossa empatia e percepção das pessoas e nos tira o tapete, virando o tabuleiro nos últimos instantes ao som de Radiohead.
    A série é tão boa que pede um valente binge-watch, mas é perfeitamente natural que depois de "Playtest" ou "Shut Up and Dance" sintam necessidade de respirar um bocadinho. Felizmente, "San Junipero" é o melhor calmante possível - Mackenzie Davis e Gugu Mbatha-Raw dividem cenas no episódio que melhor trabalha o seu twist. Por outro lado, "Man Against Fire" é provavelmente aquele cuja revelação é mais previsível ou denunciada, acompanhando o futuro dos soldados. Mas a série só fecha depois do seu maior episódio - "Hated in the Nation" tem 1 hora e 29 minutos - com Kelly Macdonald e Faye Marsay (Game of Thrones) a investigarem juntas um conjunto de mortes relacionadas com o Twitter e motivadas por hashtags. Um episódio que parece um casamento entre The X Files, Luther e True Detective.
     
    
A Personagem: Yorkie (Mackenzie Davis).
    Se às vezes é complicado escolher a melhor personagem de séries com vários episódios e, por isso, muito mais trabalhadas, ainda mais difícil é defender o impacto de alguém que nos acompanhou durante - em média - 1 hora.
    Parece-nos mais ou menos indiscutível que em termos de desempenhos, os grandes destaques da temporada são os de Bryce Dallas Howard como Lacie em "Nosedive", Wyatt Russell como Cooper em "Playtest" e o jovem Alex Lawther em "Shut Up and Dance".
    No entanto, Mackenzie Davis (uma estrela em ascensão, e a com maior potencial de todos os actores envolvidos nesta temporada, que muito tem crescido em Halt and Catch Fire, da AMC, e que a curto-prazo surgirá em Blade Runner 2049) é especial. A sua Yorkie é uma senhora idosa em coma, que uma vez por semana tem a possibilidade de visitar um paraíso digital e virtual no qual pode voltar a ser a rapariga que era antes de um acidente de carro lhe roubar quase tudo. Os óculos e o ar inocente, perdido e deslocado ajudam a integrar Yorkie no maravilhoso mundo da série, e seria injusto eleger Yorkie sem mencionar Kelly - a química e empatia de Davis com Gugu Mbatha-Raw catapulta o episódio para outro patamar.
     

O Episódio: 04 'San Junipero'.
    É mesmo complicado escolher, por boas razões. Numa série "normal", há inclusive uma tendência narrativa para que determinados episódios contenham o clímax da jornada dos protagonistas, em 'Black Mirror' cada episódio é uma viagem por si só.
    "Man Against Fire" (05) é capaz de ser o pior pela sua previsibilidade. De resto, Brooker mantém o seu hábito de nos oferecer quase sempre um final amargo, desejando se calhar que vendo um futuro sem esperança, a sociedade actual ainda acorde a tempo de mudar o trajecto até este eventual "lá".
    "Nosedive" conta com Bryce Dallas Howard em grande e Joe Wright dificilmente poderia fazer melhor trabalho, claudicando o episódio graças a algumas coisas do argumento da actriz Rashida Jones e de Michael Schur (Parks and Recreation). Numa hipocrisia que tem tanto de risível como de assustadora, "Nosedive" sofre com uma das poucas afinações que esta temporada de 'Black Mirror' tem - com uma super-produção e talvez a querer privilegiar o target americano, notam-se menos subtilezas.
    "Hated in the Nation" é um dos vários episódios que teria sucesso como filme, embora algumas coisas da história não façam sentido; e "Shut Up and Dance" é delicioso pela forma como se revela capaz de inverter tudo, fazendo-nos sentir mal connosco próprios.
    "Playtest" é quase perfeito no seu género (louvável também o facto de Brooker conseguir desta vez mostrar o potencial do universo 'Black Mirror' em diferentes estilos e abordagens), desenrolando-se de forma brilhante. Os twists finais (um, e mais outro) acabam por parecer supérfluos, num epílogo que retira profundidade a uma cena que poderia marcar muito mais se fosse a última. No total, é uma genial escalada de emoções.
    Posto isto, "San Junipero" é tão pouco 'Black Mirror' e tão 'Black Mirror' ao mesmo tempo. Owen Harris criou uma obra-prima visual, numa homenagem musical aos anos 80 e 90, e a relação entre Yorkie e Kelly tem tanto de profundo como de surpreendente - os 20 minutos finais dão sentido a tudo o resto, fazendo do episódio um daqueles que se vê doutra maneira à 2.ª vez, e se é bom estar vivo em San Junipero, melhor é estar vivo numa época em que 'Black Mirror' existe na televisão.


O Futuro: 
    Mais do mesmo, por favor. Depois de dissertar sobre redes sociais, videojogos (com VR e AR), a privacidade online e as futuras armas na guerra, Charlie Brooker tem em 2017 mais 6 oportunidades para nos mostrar a sua visão do mundo actual e do futuro, com uma perspectiva e mensagem como só ele sabe dar.
    Ao contrário do que fazemos para outras séries - mais lineares nas transições entre temporadas - pouco sentido faz adivinhar o futuro da série. Até porque poucas são as pessoas que hoje em dia visitam tão bem o futuro como Charlie Brooker. Quanto muito, poderemos em breve publicar um artigo com uma lista de realizadores e actores/ actrizes que encaixariam bem na quarta temporada do melhor resgate da História da Netflix. Fica a promessa.

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