4 de Dezembro de 2015, Benfica-Académica, minuto 84. Jardel confia-lhe a bola, está posicionado na linha de meio-campo, acelera e transporta até soltar para Gaitán, que lhe devolve o esférico. Recebe orientado, ganha balanço e dispara uma bomba. Golaço, no 1.º jogo a titular na Luz. Horas antes tinha dito a um dos meus companheiros de Sagres 3 "Hoje não posso ir, e vou perder o golo do Renato". Assim foi.
Podemos tirar alguém da rua, mas não podemos tirar a Rua dessa pessoa. Chamam-lhe selvagem, atrevido, indomável, uns perdem-se no desrespeito cego de questionar a idade dele, outros dizem que é agressivo. Pelo meio há quem perceba o essencial: ele está certo, e a esmagadora maioria está errada. É um desses casos. Usa o corpo, ombro-a-ombro e diz ao adversário "Eu estou aqui, e esta bola é minha", com o respeito de quem só faz tudo aquilo que permitia que lhe fizessem a ele. Porque, ao contrário de muitos colegas de profissão, para ele vergonha é estar no chão. É assim na rua, era assim no bairro, é assim em campo. Olha-se para ele e não tem medo. Tem fome, de escrever o seu caminho e tornar-se quem pode ser. Fá-lo não só por ele, mas por toda a Musgueira. Leva o bairro para cada jogo do Benfica, e levará o Benfica para cada jogo do seu futuro. No Bayern, na Selecção, e em todas as páginas que ainda estão por escrever.
Na nossa Ocidental praia lusitana, foram poucas as vezes em que senti "este é especial", um entusiasmo inexplicável. Neste século aconteceu, em campo, naquele instante em que um rapaz chamado Cristiano Ronaldo ziguezagueou contra o Moreirense (os meus amigos sportinguistas idolatravam Ricardo Quaresma, e eu dizia-lhes que achava que Ronaldo tinha mais potencial) e com Bernardo Silva, por exemplo quando recebeu com "pantufas" uma bola junto à linha lateral diante da Oliveirense. Fora dele, ao acompanhar os primeiros passos de José Mourinho e Marco Silva. Relativamente a Renato Sanches o caso muda de figura, porque a sensação que tenho é que se me fosse dada a hipótese de criar em laboratório um jogador com tudo aquilo que prezo no futebol, o resultado seria ele: um box-to-box com pulmão para dar e vender, o 8 que nunca se esconde e aparece nos jogos grandes, com qualidade técnica, fonte inesgotável de força (e a famosa "massa" implica sobretudo o jogador querer a bola, porque mais do que força física, exige raça e saber meter o corpo) e fisionomia de jogador da formação do Ajax. Parecia destinado ao futebol inglês - e nada nos diz que não acabará lá mais tarde - mas segue para Munique, bem entregue a um clube que praticamente não erra e que com o rigor, profissionalismo e fiabilidade alemães fará com que o Bulo cresça de ano para ano, conquistando a titularidade aos poucos num clube com ADN vencedor.
Chegou com 9 anos, sai quase com dezanove. Cedo demais. Como seria sempre. Renato Júnior Luz Sanches, o "patrão" que se estreou com idade de júnior na Luz. O destino tem destas coisas.
Mas o que é que faz os adeptos encarnados idolatrarem Renato, e os adversários perderem-se num ódio e animosidade sem justificação? É mais ou menos simples. Para os lados da Luz, o rapaz que não esquece o Águias da Musgueira, e que continua a visitar as suas raízes e a pedir a mesma bifana de sempre, foi a alma deste Benfica 2015/ 16. Na época em que o Benfica pode assegurar o tri sem Renato em campo na última jornada, o camisola 85 vincou uma mudança, um antes e um depois - das 9 derrotas do Benfica esta temporada, 6 ocorreram antes de Renato ser aposta (e as três que ele testemunhou foram com Atlético Madrid, Porto e Bayern); com Renato em campo o registo na Liga é ilucidativo, em 24 jogos, 22 vitórias, 1 empate e uma derrota. Alguns adeptos rivais (não os verdadeiros adeptos, porque esses preocupam-se em apoiar a equipa, e não em lançar farpas obcecados e sempre de olho no vizinho) questionam a idade do miúdo, quando toda a gente o viu crescer nos últimos "10 anos de manto sagrado"; queixam-se que tudo lhe é permitido, sem compreenderem que a atitude e a garra dele não deviam ser alvo de críticas mas servir de exemplo para os que partilham o campo com ele; e, no limite do ridículo, visitam a página do Bayern para dizer que a sua contratação foi um erro, que tudo nele é hype, que é só produto da imprensa portuguesa e que o Bayern deixou passar a oportunidade de contratar verdadeiros craques como João Mário ou William. Figuras tristes... de quem não sabe o que é viver o desporto, viver o futebol. Porque poucos sabem em Portugal. Ver João Mário jogar dá-me prazer, quando via James Rodríguez no Porto acontecia o mesmo. E o motivo é só um: é impossível gostarem mais do meu clube do que eu gosto, mas a minha paixão pelo futebol está acima da minha paixão clubística. E a melhor rivalidade, saudável e competitiva, implica naturalmente querermos ser melhores que os nossos rivais, mas a vitória é tanto mais valiosa quanto maior força tiverem esses rivais. Os preciosismos de quem só o quis mal até aqui, levaram à construção do mito "falha muitos passes", quando na realidade tem uma média de acerto próxima dos 90% (no jogo de Munique, por exemplo, teve uma média de 91%) e os que falha são normalmente passes em zonas adiantadas, arriscando em vez de jogar para o lado ou para trás; nada de comparável com os vários turnovers que Pizzi tinha em 2014/ 15 na posição 8 (que não é a dele) na primeira fase de construção. Esta reflexão não se propõe ser de cariz táctico, mas a evidente rebeldia e o menor rigor posicional de Renato foram factores positivos para este Benfica, e possíveis graças a um senhor chamado Fejsa.
Na época dos agentes, dos múltiplos interesses que conspurcam um futebol corrupto e movido pelo dinheiro e não pela paixão e pelo amor, 2015/ 16 mostrou que podemos ter esperança. Porque se o underdog Leicester City consegue ser campeão, se o Atleti de Simeone está novamente na final da Champions, e um rapaz de 18 anos consegue carregar e contagiar o futebol do seu clube do coração, candidato ao título em Portugal, chegando ao colosso de Munique como nenhum outro jogador português chegou em 116 anos de História, então há motivos para continuar a alimentar este vício irracional, e razões para sonhar.
Renato Sanches serve de exemplo, para muitos rapazes do Seixal, de Alcochete, do Olival, Restelo, Mata-Real ou Vila do Conde, espalhados por esse país fora, e serve exemplo para o Benfica, que não retirou qualquer rendimento desportivo de Bernardo Silva, mas aprendeu a lição, que pode ser replicada com talentos como João Carvalho, José Gomes, João Filipe, Nuno Santos, Diogo Gonçalves, Pedro Rodrigues, Florentino, Gedson Fernandes ou Úmaro Embaló, entre outros.
Faltava ao Benfica arriscar, desequilibrar, queimar linhas, mas Renato trouxe mais - trouxe a palavra que quando era pequeno disse, a sorrir, que significava para ele estar no Benfica, "Alegria". Faltava ao Benfica ter capacidade para segurar os jogadores criados em casa, e fazer do Estádio da Luz para eles um bairro eterno. Podiam até ser 80 Milhões pagos a pronto, diria sempre não, porque não há dinheiro que me faça abdicar de alguém que sei que, quando lá em cima o capitão Coluna o viu a jogar, terá fechado finalmente os olhos tranquilo. O monstro tinha herdeiro.
Miguel Pontares