Uma serva massaja a Rainha, e no prolongamento do tempo interpretamo-la para sempre subjugada, condenada a ser apenas mais um de tantos coelhos, apenas mais um substituto postiço e vazio de um outro amor, esse sim, genuíno. Genuína é a química em palco e fora dele entre Jackson Maine e Ally (aka Bradley Cooper e Lady Gaga), a dor com que Mahershala Ali explode à chuva, ou o acordeão emocional que Jim Cummings revela ser, de farda vestida, e a braços com um divórcio e a morte da mãe.
2019 são os skates a ondular estrada fora, seja em Mid90's ou em Minding the Gap, é a Sony a mostrar à Disney que o filme de super-heróis do ano (sim, no ano de Black Panther e Avengers: Infinity War) é na verdade um filme de animação, e é o terror, feito e bem feito através de diferentes facetas, em Hereditary, A Quiet Place, Suspiria e Annihilation.
A Academia já soma 91 edições, mas para nós é apenas a oitava. Bem-vindos a mais uma edição dos Óscares Barba Por Fazer. Nesta cerimónia digital anual sem hipocrisias nem preocupações com o politicamente correcto ou socialmente recomendável, as coisas são normalmente muito diferentes da realidade. Assim é nosso mundo paralelo, em que o soberano critério de votação é a qualidade e a defesa da arte.
Bem-vindos... aos Óscares Barba Por Fazer 2019.
Podemos dizer que nos custou deixar à porta Eighth Grade e Spider-Man: Into the Spider-Verse, reconhendo a beleza de Cold War, A Star is Born e If Beale Street Could Talk, a simpatia de Green Book e Paddington 2, ou a ousadia de Suspiria e Sorry to Bother You.
Num ano marcado por estreias de alto nível na realização, podemos começar o nosso raciocínio precisamente por essa vertente: Hereditary, o melhor filme de terror puro do ano (o último acto foi a única parte menos forte), deu-nos a sensação reconfortante de estar a testemunhar um clássico instantâneo; e não deixa de ser curioso que, sempre orientada para fazer de sua bandeira filmes sobre minorias, a Academia tenha ignorado o melhor do ano nesse capítulo, Blindspotting.
A relação de pai e filha à margem da sociedade fez de Leave No Trace um dos filmes mais coesos do ano, Annihilation destacou-se de tudo o resto na ficção científica (um filme Netflix que adoraríamos ter visto em ecrã de cinema) e já era expectável que a dupla Joaquin Phoenix-Lynne Ramsay resultasse num filme duro e intenso. Assim foi You Were Never Really Here.
Com First Reformed, Paul Schrader reencontrou a sua voz, a mesma voz que um dia deu ao mundo e a Scorsese Taxi Driver; e da Coreia do Sul chegou-nos Burning, um dos filmes mais ambíguos e ricos em camadas deste ano, e um objecto em constante metamorfose narrativa.
Elogiamos em Roma e Shoplifters traços idênticos - o realismo e o humanismo. Aquilo que o filme da Netflix ganhou em beleza e direcção de fotografia, a obra de Hirokazu Koreeda ganhou em sensibilidade e intimidade, revelando-se nesse duelo mais eficaz.
Mas nenhum filme nos encheu mais as medidas durante a última temporada cinematográfica do que The Favourite. O grego Yorgos Lanthimos ofereceu ao público um filme quase perfeito. Sustentado pelas surreais interpretações do trio Olivia Colman, Rachel Weisz e Emma Stone (nenhum filme se apresentou este ano tão sólido a nível de acting), teve o mérito de ser muito provavelmente ao mesmo tempo a melhor comédia e o melhor drama do ano. Kubrick teria gostado.
Este ano, não há como não nos rendermos perante Alfonso Cuarón. O homem que fez um filme quase sozinho (escreveu, produziu, realizou, foi o responsável pela direcção de fotografia e ainda colaborou a nível de montagem) e que "obrigou" a Academia a aceitar a Netflix, construiu mais um portento visual, levando-nos ao seu passado numa viagem a preto e branco arriscada em termos de estilo (curioso um filme tão pessoal e íntimo apostar em planos tão abertos) e forma (o peso dramático do filme está quase todo alicerçado numa só sequência, o momento de catarse na praia, que se não "bater", fará o filme parecer banal).
Além de Cuarón, Lanthimos consegue pela primeira vez uma nomeação connosco, conjugando o seu humor vil com a audácia de saber como fazer The Favourite viver das microexpressões de Olivia Colman. Hirokazu Koreeda é um senhor, e Shoplifters é tudo aquilo a que se propõe: profundo, provocador e capaz de conquistar um lugar especial no nosso imaginário.
Finalmente, não deixa de ser irónico que a Hollywood tenha o discurso do enpowerment feminino mas ao mesmo tempo tenha ignorado por completo o facto de 2 dos 5 melhores trabalhos de realização do ano terem pertencido a mulheres. Lynne Ramsay e Debra Granik são, cada uma com a sua identidade bem vincada, mestres na arte de contar uma história.
Willem Dafoe virou pintura viva como Van Gogh em At Eternity's Gate, e Jim Cummings é a nossa escolha mais "fora da caixa" - o actor, realizador e argumentista de Thunder Road, curta que virou longa, terá sido porventura o actor que mais nos emocionou esta temporada.
Tudo somado, numa galáxia à parte estiveram Joaquin Phoenix e Ethan Hawke. Ambos comedidos mas sempre conscientes das suas personagens, extraordinariamente apresentadas e construídas. No difícil desempate optámos por Hawke naquele que será o melhor trabalho da sua carreira.
Há muito uma espécie de rainha da televisão britânica - curiosamente será em breve a sucessora de Claire Foy como Rainha Isabel em The Crown -, Colman teve em The Favourite o palco perfeito para ser infantil, desagradável, mimada, melancólica, apaixonada, inocente, temerária e insana. Lanthimos sabia que repousando a câmara 20 segundos no rosto de Colman, esta levaria o espectador a detectar e interpretar 50 (hipérbole) estados de alma diferentes. Do outro mundo.
Ao lado da maioria do grande público passou o desempenho da estreante Helena Howard em Madeline's Madeline, capaz de nos arrebatar com o seu talento. Um dos crimes da Academia foi sem dúvida deixar de fora Toni Collette, levada ao limite em Hereditary, e Maggie Gyllenhaal manteve o seu estado de graça em termos interpretativos (iniciado na série The Deuce) no papel de uma professora da pré-primária. Quanto a nós, a categoria de Melhor Actriz foi a que este ano teve um nível mais alto de candidatas (é mesmo difícil deixar de fora a magnética Joanna Kulig, e as revelações Elsie Fisher, Lady Gaga e Thomasin McKenzie), mas Yalitza Aparicio, a actriz que foi ao casting de Roma com receio que se tratasse de um esquema de tráfico humano, consegue a última vaga disponível com uma espécie de interpretação-milagre. Às vezes não se aprende, está no sangue, latente.
Das nossas restantes 4 escolhas, ficando os jovens Timothée Chalamet (há uns meses atrás julgávamos que seria ele o nosso eleito) e Alex Wolff (não pensávamos que tivesse aquilo dentro dele) à porta, destaque principalmente para Steven Yeun. Popular pelo seu envolvimento em The Walking Dead, Yeun deu-nos em Burning uma das personagens mais fascinantes do ano, transformando em absoluto o filme a partir da sua introdução.
Ben Foster (talvez fosse mais correcto considerar que Leave No Trace tem Ben Foster e Thomasin McKenzie ambos como principais) mantém-se um dos nomes mais subvalorizados no sector, Richard E. Grant esteve soberbo e Bryan Tyree Henry mostrou em If Beale Street Could Talk, tal como Mahershala Ali fizera há dois anos, que nos filmes de Barry Jenkins são por vezes as personagens com o tempo de ecrã mais contado que carregam maior peso dramático e narrativo.
A sério, a direcção de casting de The Favourite merecia óscares. É tão difícil pensar em 3 actrizes que encaixassem tão bem como Weisz, Colman e Stone naquelas 3 personagens... Embora com dúvidas entre ambas, e mantendo a opinião que Emma Stone tem tudo para nos próximos anos chegar a números dourados num patamar Hepburn/ Streep, temos que nos render perante Rachel Weisz. Cada linha de diálogo da actriz britânica no filme é corrosiva e deliciosa, revelando-se Weisz um sonho tornado realidade para os argumentistas e para Lanthimos, que já trabalhara com ela em The Lobster.
A nossa apreciação do trabalho de Sakura Ando em Shoplifters evoluiu ao longo do filme, Regina King tem em If Beale Street Could Talk uma demonstração do porquê de não perder em nada para uma actriz de elite como Viola Davis, e faz-nos alguma confusão como é que a Academia ignorou Elizabeth Debicki, um íman de atenção em Widows. Destaque ainda para Marina de Tavira (Roma) e Miranda July (Madeline's Madeline).
Com Blindspotting como menção honrosa, Sorry to Bother You brilhou pela criatividade, pelo carácter bizarro e pelo risco. Shoplifters desconstruiu a noção de família, emocionou com subtileza e sensibilidade, e desenhou momentos difíceis de esquecer. Eighth Grade fotografou a geração Youtube, mostrando inteligência na perspectiva assumida (é sempre mais difícil mas muitas vezes mais interessante estudar o falhanço e não o sucesso) e confirmando que Bo Burnham é uma voz especial que pode marcar os próximos anos.
The Favourite brilhou no pingue-pongue dos seus diálogos e First Reformed mostrou que quem sabe não esquece. Não digam ao Paul Schrader, mas não conseguimos evitar pensar o que seria este argumento nas mãos de outro realizador.
Os irmãos Coen já fizeram melhor, mas por pouco The Ballad of Buster Scruggs não surgiu entre o nosso quinteto de argumentos adaptados. Comecemos por BlacKkKlansman, por vezes desafiante a nível de tom mas sempre ambicioso. Outro dos crimes quanto a nós da Academia foi o ignorar nesta categoria de Spider-Man: Into the Spider-Verse - afinal, estamos a falar de uma revolução na animação, da quebra de convenções e de um dos melhores filmes de super-heróis deste século.
Leave No Trace é um argumento polido, Annihilation passou o teste ao transpor para o ecrã com mestria momentos que podiam facilmente ter corrido mal, e Burning não só se revelou capaz de passar Murakami para o ecrã como se apresentou depois como um objecto de estudo, em constante metamorfose, permitindo diferentes interpretações.
A nível técnico, na Edição costumamos privilegiar a manutenção de ritmo, a inexistência de cenas a mais e a (sempre difícil) noção de que determinados filmes "ganharam" em pós-produção, surgindo The Favourite em vantagem relativamente a concorrentes como Mission Impossible: Fallout ou o documentário Minding the Gap.
A direcção de Fotografia só podia ficar entregue a Roma ou Cold War, e em termos de Banda Sonora Original escolhemos 5 exemplos muitíssimo diferentes. A elegância composta por Nicholas Brittel, que já colaborara com Barry Jenkins em Moonlight, merece vencer. Finalmente, a nível de Canção, não há como fugir a "Shallow", pensando na 1ª vez que ouvimos a música e não no sentimento que a canção nos provoca 70.000 vezes depois.
Total de Nomeações Barba Por Fazer:
8 - The Favourite;
5 - You Were Never Really Here;
4 - Roma; Shoplifters, Leave No Trace;
3 - Burning, First Reformed, Blindspotting, Annihilation, Hereditary, If Beale Street Could Talk;
2 - Eighth Grade, A Star is Born, Spider-Man: Into the Spider-Verse, First Man, Suspiria
1 - Wildlife, Thunder Road, At Eternity's Gate, Bohemian Rhapsody, Madeline's Madeline, The Kindergarten Teacher, Green Book, Can You Ever Forgive Me?, Widows, Sorry to Bother You, BlacKkKlansman, Cold War, Mission Impossible: Fallout, Minding the Gap, Isle of Dogs, Boy Erased, Vox Lux.
Rookie do Ano: Helena Howard. Outros nomeados: Lady Gaga, Thomasin McKenzie, Elsie Fisher, Sunny Suljic
Nos últimos anos temos sempre eleito um conjunto de jovens actores, verdadeiras revelações para a Sétima Arte. Jack O'Connell, Adèle Exarchopoulos, Lakeith Stanfield, Lupita Nyong'o, Jacob Tremblay, Anya Taylor-Joy, Lucas Hedges e Timothée Chalamet já passaram por aqui.
Desta vez, com 4 caras do sexo feminino entre os 5 destaques, a distinção principal vai para Helena Howard. A actriz de 20 anos, descoberta por Josephine Decker, é uma força da natureza e, com cabeça e os projectos certos, tem tudo para se tornar um caso sério a médio-prazo.
De resto, Elsie Fisher foi a alma de Eighth Grade e o veículo perfeito para Bo Burnham passar a sua mensagem e "captar" uma geração, Thomasin McKenzie é mais um talento identificado por Debra Granik, a realizadora que catapultou Jennifer Lawrence com Winter's Bone, e Lady Gaga... agora sim, todos podemos e devemos encará-la como actriz. Uma verdadeira e completa artista. Por fim, o elemento mais novo desta fornada é Sunny Suljic: já tinha ficado no nosso radar graças a The Killing of a Sacred Deer, mas Mid90's confirmou-o como uma criatura rara (tem apenas 13 anos).
Em relação à nossa Personalidade do Ano, o nosso volátil critério permite-nos sempre alguma criatividade. Já destacámos no passado os anos preenchidos de McConaughey, Hardy ou Vikander, a devoção de Linklater a entregar 12 anos da sua vida a uma obra, ou a projecção de força do símbolo feminino Gal Gadot. Desta vez, Alfonso Cuarón merece uma palavra especial. Há uns tempos pensávamos que seria The Irishman de Scorsese o filme que iria abrir horizontes para a Netflix, mas foi o realizador mexicano num projecto muitíssimo pessoal o responsável pela possível mudança de paradigma no sector da distribuição cinematográfica.
Estas são as nossas opiniões. Fiquem à vontade para dar as vossas.
Para o ano há mais.