Dia 20 arranca no Qatar aquele que, à nascença, parece ser o Mundial mais controverso de sempre. No que se tem vindo a comprovar um cocktail explosivo de corrupção e desrespeito pelos direitos humanos, a FIFA escolheu conceder às Arábias a organização da maior competição internacional de futebol - mais de 200 mil milhões foram investidos (muito além da expectável construção de estádios, o Qatar teve que construir nomeadamente o metro em Doha, e finalizar o novo aeroporto internacional), transbordando a hipocrisia e crueldade a conivência com um torneio cujos relvados estão sobre milhares de trabalhadores migrantes que faleceram durante as obras e que foram forçados a trabalhar 14 a 18 horas diárias; o Qatar, que impôs aos clubes uma excepcional pausa (podem-se queixar o Benfica, o Arsenal ou o Nápoles) e tem comprado adeptos, torna inevitável um choque cultural tremendo entre um país retrógrado e alguns "convidados" que em diferentes momentos, em campo ou nas bancadas, não se coibirão de defender causas, como os direitos das mulheres e direitos LGBT.
Tanto quanto possível alheio a todo o potencial polémico em termos sociopolíticos, estará o futebol. O Grupo A inclui um anfitrião que muito tem crescido e que não quer envergonhar os locais, uma laranja mecânica favorita ao 1.º lugar, o campeão da última CAN que desespera pela recuperação atempada da referência e herói de uma nação inteira, Sadio Mané, e ainda um Equador carregado de energia e juventude, cuja presença no Qatar ditou a não-qualificação de selecções sul-americanas como a Colômbia e o Chile.
Neste olhar sobre o Grupo A, importa ter presente a longa sequência sem perder dos Países Baixos com van Gaal no comando, garantindo a final four da Liga das Nações (caminhada valorizada com duas vitórias contra a Bélgica), sendo o 5-3-2 sinónimo de solidez defensiva e controlo. Recordamos que em 2014 os Países Baixos então com van Gaal perderam com a Argentina (desfecho que prevemos ver repetido) apenas nas grandes penalidades, perfilando-se Noppert como o especialista de grandes penalidades que van Gaal sacará do banco à la Krul.
O Senegal chega ao Qatar como autêntico pesadelo para o Egipto, em dois diferentes episódios Mané versus Salah. A seleção africana, uma das potenciais equipas-sensação da competição se Sadio estiver apto para contribuir a 100%, venceu a CAN em Fevereiro passado na decisão através das grandes penalidades, e foi também da marca dos 11 metros que decidiu, novamente diante do Egipto, o acesso ao Mundial via play-off.
Correndo por fora, o Equador é a equipa mais imprevisível do grupo, ficando a sensação que o resultado do jogo de abertura (Qatar x Equador) terá um peso gigante na moral desta seleção jovem, veloz e com pilhas Duracell, que na qualificação CONMEBOL somou mais pontos do que Peru, Colômbia e Chile, marcou mais golos do que o Uruguai e tantos como a Argentina.
O Qatar é o underdog do grupo, mas é notável o crescimento futebolístico do país, com muito trabalho de casa em termos de camadas jovens e beneficiando de um estágio mais prolongado e da grande sintonia entre os seus atletas - 13 dos 26 convocados jogam no Al-Sadd, equipa que Xavi orientou entre 2015 e 2019.
Ao antever o desenrolar deste Grupo A, seria uma surpresa se os Países Baixos não conseguissem a liderança. O poderio físico de Senegal e Equador sugere que o encontro da 3.ª jornada, quiçá decisivo, será eletrizante, e quanto ao Qatar aguardamos com alguma expectativa o que uma seleção muito dependente da qualidade técnica de Afif e Al Haydos e da exploração da profundidade por parte de Almoez Ali conseguirá fazer logo no 1.º jogo, podendo em função desse primeiro resultado virar uma improvável dor de cabeça com bloco baixo na luta pelo pontinho nos embates seguintes.
- Guarda-Redes: Remko Pasveer (Ajax), Justin Bijlow (Feyenoord), Andries Noppert (Heerenveen)
- Defesas: Denzel Dumfries (Inter), Jeremie Frimpong (Bayer Leverkusen), Jurrien Timber (Ajax), Virgil Van Dijk (Liverpool), Matthijs De Ligt (Bayern Munique), Nathan Aké (Manchester City), Stefan De Vrij (Inter), Daley Blind (Ajax), Tyrell Malacia (Manchester United)
- Médios: Frenkie de Jong (Barcelona), Marten de Roon (Atalanta), Teun Koopmeiners (Atalanta), Kenneth Taylor (Ajax), Davy Klaassen (Ajax), Xavi Simons (PSV), Steven Berghuis (Ajax)
- Extremos/ Avançados: Noa Lang (Club Brugge), Steven Bergwijn (Ajax), Cody Gakpo (PSV), Lukk de Jong (PSV), Wout Weghorst (Besiktas), Vincent Janssen (Royal Antwerp), Memphis Depay (Barcelona)
O país de Johan Cruijff nunca venceu um Mundial, tendo perdido as 3 finais que disputou. Depois de falhar a qualificação para 2018, o país das tulipas e dos moinhos regressa e promete apaixonar durante a fase de grupos, com jogos seguramente abertos contra Equador e Senegal, mas dificilmente vemos esta equipa a chegar mais longe do que os quartos-de-final.
No nosso entender, van Gaal pecou na baliza. Flekken (Friburgo) é o melhor guarda-redes neerlandês da actualidade e, entre os convocados, o mais inteligente seria entregar a baliza ao promissor Bijlow. Porém, tudo indica que será mesmo Pasveer o dono das luvas.
A antiga Holanda deverá em princípio dar-se ao luxo de deixar centrais como De Ligt e De Vrij no banco, mas Timber e Aké são quem melhor complementa o patrão Virgil van Dijk. A experiência e polivalência de Blind fá-lo ganhar a pole position à esquerda em relação a Malacia, enquanto que à direita Dumfries terá via verde para galgar metros ao longo do corredor.
Da dupla Koopmeiners e De Roon sairá o companheiro de sector de F. de Jong, faltando apenas perceber qual será o Plano A de van Gaal - privilegiar um jogador como Berghuis, melhor a surgir entre linhas e ligar sectores, ou aumentar o poder de fogo (numa versão mais 5-2-3 / 3-4-3) com Bergwijn. Independentemente desta decisão, Gakpo-Depay devem ser aposta em busca de golos e de caos nas defesas adversárias, guardando um perfil mais fixo (Janssen, Weghorst ou L. de Jong) para outros momentos do jogo.
Enquanto estiver em competição, Cody Gakpo está no ponto para ser um dos destaques da prova, ele que é nesta altura o jogador mais caro fora dos campeonatos Top-5. Com 13 golos e 18 assistências esta época pelo PSV, o esguio extremo de 23 anos e 1,89m chega ao Qatar cheio de confiança. O esquema da equipa permite-lhe explorar bem as suas características.
Tal como no Euro-2020, Denzel Dumfries pode ser peça-chave nas ambições desta equipa, convidando o conservadorismo de Blind no flanco oposto à elevada frequência de aventuras ofensivas por parte do lateral do Inter. Será difícil encontrar neste Mundial um lateral/ ala que tantas vezes se incorpora no ataque.
Memphis Depay é o jóker desta equipa. O avançado do Barcelona está uma sombra do que já foi, mas pode encarar o certame do Qatar como uma oportunidade para atrair interessados e fugir à prisão de Barcelona em Janeiro. A seu favor, o bom registo de 42 golos em 81 jogos ao serviço da seleção.
Falar desta equipa sem mencionar Virgil van Dijk e Frenkie de Jong seria um crime. O central e capitão de equipa terá mesmo que dizer presente, sobretudo quando os adversários subirem de nível, e o médio do Barcelona funcionará como placa giratória para todo o jogo da turma de van Gaal. Quem quiser perceber como jogam os Países Baixos, faça o exercício de não tirar os olhos do camisola 21.
- Guarda-Redes: Edouard Mendy (Chelsea), Seny Dieng (QPR), Alfred Gomis (Rennes)
- Defesas: Youssouf Sabaly (Bétis), Formose Mendy (Amiens), Kalidou Koulibaly (Chelsea), Pape Abou Cissé (Olympiacos), Abdou Diallo (Leipzig), Ismail Jakobs (Mónaco), Fodé Ballo-Touré (AC Milan)
- Médios: Pape Gueye (Marselha), Idrissa Gana Gueye (Everton), Pathé Ciss (Rayo Vallecano), Nampalys Mendy (Leicester City), Cheikhou Kouyaté (Nottingham Forest), Pape Sarr (Cremonese), Moustapha Name (Pafos FC)
- Extremos/ Avançados: Iliman Ndiaye (Sheffield United), Krépin Diatta (Mónaco), Ismaila Sarr (Watford), Sadio Mané (Bayern Munique), Nicolas Jackson (Villarreal), Bamba Dieng (Marselha), Famara Diédhiou (Alanyaspor), Boulaye Dia (Salernitana)
Invariavelmente fiel ao seu 4-3-3, Aliou Cissé tem em mãos a melhor seleção africana da atualidade e uma das potenciais equipas-sensação deste Mundial 2022. Porém, um desfecho negativo sobre a recuperação de Sadio Mané pode instantaneamente fazer disparar as chances do Equador neste grupo, uma vez que a luz e importância de Mané nesta equipa e para este país vai muito além do plano desportivo.
Com o guarda-redes do Chelsea, Edouard Mendy, como titular, a defesa sentirá a falta de Bouna Sarr, mas quem tem Koulibaly tem uma voz de comando como poucas. No miolo, será primordial uma boa comunicação e interligação entre Nampalys Mendy, Kouyaté e Gana Gueye, enquanto que na frente o menor conhecimento dos adversários em relação às características de Boulaye Dia pode beneficiar o jogador mais central, menos "respeitado" pelos defesas do que Sarr e Mané, que constantemente obrigarão as defesas a fazer 2 para 1 para os travar.
O Senegal tem algumas cartas interessantes no banco, com particular destaque para Iliman Ndiaye, uma potencial revelação para muitos adeptos no Qatar.
Como sublinhámos, Sadio Mané é o craque superlativo deste Senegal. Segundo classificado na última Bola de Ouro, o extremo do Bayern Munique merece tudo o que o mundo lhe possa retribuir de bom, e muito injusto seria não poder carregar o seu Senegal na máxima força.
No flanco oposto, Ismaila Sarr é uma espécie de Mané, embora incomparável na regularidade. Com ou sem Mané na equação, o extremo do Watford (que ainda há uns anos bisou contra o Liverpool) terá sempre que aparecer e recordar-nos a todos porque é que o Championship é pequeno demais para o seu talento. Um diamante.
Mendy, Koulibaly ou Gana Gueye são nomes sobejamente conhecidos nos 4 cantos do planeta futebol, ao contrário de Boulaye Dia e Iliman Ndiaye. O primeiro, avançado de 25 anos do Salernitana, que na época passada actuou no Villarreal, é um jogador clínico e com diferentes argumentos na finalização; quanto a Ndiaye, craque em potência do Sheffield United, pode revelar-se um arma decisiva a partir do banco, reunindo os ingredientes certos para fazer estragos com o seu perfil híbrido entre linhas, meio médio ofensivo meio segundo avançado.
- Guarda-Redes: Alexander Domínguez (LDU Quito), Hernán Galíndez (Aucas), Moisés Ramirez (Independiente Del Valle)
- Defesas: Angelo Preciado (Genk), William Pacho (Royal Antwerp), Jackson Porozo (Troyes), Felix Torres (Santos Laguna), Robert Arboleda (São Paulo), Piero Hincapié (Bayer Leverkusen), Xavier Arreaga (Seattle Sounders), Pervis Estupiñan (Brighton), Diego Palacios (Los Angeles FC)
- Médios: Carlos Gruezo (Augsburgo), Jhegson Méndez (Los Angeles FC), José Cifuentes (Los Angeles FC), Moisés Caicedo (Brighton), Alan Franco (Talleres), Ángel Mena (Club León)
- Extremos/ Avançados: Jeremy Sarmiento (Brighton), Romario Ibarra (Pachuca), Gonzalo Plata (Valladolid), Ayrton Preciado (Santos Laguna), Kevin Jauch (Atl. Santo Domingo), Djorkaeff Reasco (Newell's), Michael Estrada (Cruz Azul), Enner Valencia (Fenerbahçe)
O argentino Gustavo Alfaro tem ao seu dispor um leque de jogadores promissor, num flexível 4-3-3 com poucos segredos mas muito complicado de contrariar. Na baliza, o trintão Alexander Domínguez já sabe o que é brilhar em Mundiais, tendo sido destaque no Brasil'2014, a competição que apresentou Enner Valencia há 8 anos, deixando meia Europa atrás do hoje capitão do Equador.
A linha defensiva com Preciado, Felix Torres (ou Porozo), Hincapié e Estupiñan dá garantias, Gruezo será o guarda-costas dos médios interiores Cifuentes e Moisés Caicedo (vê-lo-emos em terrenos mais adiantados do que aqueles que costuma pisar no Brighton), ficando a frente entregue a Plata, Ibarra e Enner Valencia. Não se deve no entanto excluir o goleador Michael Estrada, o 12.º jogador desta equipa que em diversos momentos forçará Alfaro a transformar o figurino para um 4-4-2 de menor circulação e maior objetividade.
- Guarda-Redes: Meshaal Barsham (Al-Sadd), Saad Al-Sheeb (Al-Sadd), Yousef Hassan (Al-Gharafa)
- Defesas: Mosaab Khoder (Al-Sadd), Ismail Mohamad (Al-Duhail), Salem Al Hajri (Al-Sadd), Pedro Ró-Ró (Al-Sadd), Abdelkarim Hassan (Al-Sadd), Bassam Al-Rawi (Al-Duhail), Tarek Salman (Al-Sadd), Khoukhi Boualem (Al-Sadd), Homam Ahmed (Al-Gharafa)
- Médios: Jassem Gaber (Al-Arabi), Karim Boudiaf (Al-Duhail), Mohammed Waad (Al-Sadd), Mostafa Tarek (Al-Sadd), Abdulaziz Hatem (Al-Rayyan), Assim Madibo (Al-Duhail), Naif Abdul (Al-Rayyan), Ali Asad (Al-Sadd)
- Extremos/ Avançados: Hassan Al Haydos (Al-Sadd), Akram Afif (Al-Sadd), Khalid Muneer (Al-Wakrah), Mohammed Muntari (Al-Duhail), Almoez Ali (Al-Duhail), Ahmed Allaeldin (Al-Gharafa)
Naquele que será o 1.º Mundial da História do Qatar, a equipa local procurará escapar ao raro destino da seleção do país organizador não conseguir alcançar a fase a eliminar da competição. Com muita aprendizagem nos últimos anos (os qataris conquistaram a Taça da Ásia em 2019, crescendo ainda com as participações na Copa América e Gold Cup), foi muito o trabalho de bastidores nas camadas jovens, sem esquecer a importância do actual treinador do Barcelona, Xavi Hernández, na edificação de uma base no Al-Sadd, a equipa de 50% dos jogadores ao serviço do hispânico Félix Sánchez.
Num 5-3-2 com intenção de ter posse, e com Pedro Ró-Ró (nascido em Mem Martins, mudou-se para o Qatar em 2010) na linha defensiva, a grande curiosidade passará por verificar como respondem os centro-campistas Abdulaziz Hatem e Karim Boudiaf, jogadores que terão muito trabalho contra 3 seleções com médios fisica e tacticamente astutos.
A criatividade de Akram Afif, uma espécie de Salah da loja dos 300 (tomem isto como um elogio) e a verticalidade de Almoez Ali na procura do golo prometem ficar na retina dos espectadores, bem como o perfume do tecnicista Hassan Al Haydos, camisola 10 e jogador distinto, daqueles que em 1-2 toques se percebe o que está ali.
Em todo o caso, apontamos o organizador (ou teremos arbitragens "caseiras"?) ao último posto. Akram Afif é o craque dos qataris, jogador de finalizações simples, técnica muito acima da média e um potencial tormento para os rivais. Afif já esteve na Europa, não conseguindo vingar em Espanha e na Bélgica, mas aos 25 anos ainda vai mais do que a tempo de virar um dos jogadores da moda no mercado de Janeiro.